quarta-feira, 11 de maio de 2011

O grão de areia

Minha experiência com a leucemia

“Ostra feliz não faz pérola”. A ostra, para fazer uma pérola, precisa ter dentro de si um grão de areia que a faça sofrer. Sofrendo, a ostra diz para si mesma: “Preciso envolver essa areia pontuda que me machuca com uma esfera lisa que lhe tire as pontas...” Ostras felizes não fazem pérolas... Pessoas felizes não sentem a necessidade de criar. O ato criador, seja na ciência ou na arte, surge sempre de uma dor. Não é preciso que seja uma dor doída... Por vezes a dor aparece como aquela coceira que tem o nome de curiosidade. Este livro está cheio de areias pontudas que me machucaram. Para me livrar da dor, escrevi.

Tirei esse texto da contra-capa do livro de Rubem Alves , “Ostra feliz não faz pérola”, um livro que eu adoro e essa metáfora da ostra com a pérola sempre me intrigou.
Desde que li o livro pela primeira vez me questionei sobre esse grão de areia que seria a motivação original de qualquer grande idéia ou realização artística. Será que eu tinha algum grão de areia dentro de mim que tivesse força suficiente para me fazer criar? Para mim, alguém que se diz artista, isso era uma questão. Minhas curiosidades e incômodos nunca passaram da esfera cotidiana e nunca me incomodaram ao ponto de me fazer sair do meu comodismo.
De certa maneira eu desejei ter algum grande acontecimento na minha vida que me fizesse sair da minha estabilidade, dos lugares já conhecidos, alguma coisa que pudesse me fazer criar.

A notícia

Eis que me é atribuída uma doença. Grave. Uma leucemia.
Mas eu só queria um grão de areia, não um pedregulho!
Leucemia, aquela doença da novela, que cai o cabelo, que tem risco de vida, que precisa de doador compatível... Senti uma fisgada no peito e a garganta fechar. Chorei.
As coisas pareciam não fazer sentido e eu ainda não tinha engolido aquele diagnóstico. Ontem eu estava no carnaval de cílios postiços pulando de bloco em bloco, dormindo pouco, tomando todas e sem sentir nenhum mal estar. Como eu poderia estar com uma doença grave dessas?
As manchas roxas, que pareciam hematomas, denunciaram a doença. Comecei a achar estranho o fato de estar toda roxa e não me lembrar de ter batido em tantos lugares. “Ê cachaça hein?”, foi o que mais ouvi a respeito das manchas. Mas não, eu sabia que alguma coisa estava estranha. Joguei no Google: “manchas roxas” e descobri que era um sintoma de diversas doenças. Tomei um susto e no dia seguinte marquei médico. O exame de sangue saiu e estava péssimo, tudo muito abaixo do normal. Pelos olhos do médico eu já percebi que tinha alguma coisa muito ruim acontecendo. No mesmo dia ele pediu o exame da medula. E eis que o resultado veio. A pedrada.

A semana

Para saber o tipo precisávamos esperar uma semana. O tipo determinaria o risco, a gravidade da doença.Foi Uma semana de extrema angústia e também de muita alegria. Quando a notícia se espalhou, eu recebi telefonemas, recados no facebook, e-mails, cartas, flores, livros. Todos dizendo que tudo iria ficar bem, que eu era forte e ia vencer. Nunca me senti tão querida. Nunca pensei que tanta gente gostava de mim e se importava com a minha saúde. E foi então que eu acreditei que tudo daria certo e passei a curtir toda essa atenção. Parecia aniversário, minha casa vivia cheia, eu estava feliz, rodeada de amigos e energia boa. Tudo daria certo, eu tinha certeza.
Mais uma vez joguei no Google: Leucemia. E li tudo a respeito. Entrei em pânico. Uma frase grudou na minha cabeça: “sobrevida de 10 anos”. O peso da doença voltou a me atormentar. Fui dormir com o peito cheio de angústia. Resultado: acordei mal, de cama, sem conseguir levantar. Fui internada no mesmo dia. E a partir deste dia eu só sairia do hospital 30 dias depois.
O resultado saiu. Era uma leucemia do tipo M3 raríssima, mas com bom prognóstico. Uma boa notícia, mas eu ainda teria que passar por todo o tratamento pesado, como qualquer leucemia.

A campanha

A campanha para doação de sangue foi um capítulo à parte. Todo dia eu me assustava com a quantidade de gente que estava ajudando a divulgar, quanta gente uniu forças para conseguir doadores. Já que estou escrevendo sobre isso, gostaria de agradecer imensamente a todos que ajudaram de alguma forma e aos ós negativos que foram doar, porque eu usei muito o sangue de vocês. Tomei umas 10 bolsas, que salvavam meu dia. Eu adorava quando tinha transfusão. A médica já entrava no quarto dizendo: “Hoje tem presente para você!” A prostração dava lugar à vida. Todas as mensagens de celular, ligações e posts no Facebook eu fiz depois de uma transfusão, porque só com o meu sangue eu não tinha energia para nada...

O confinamento

Abril foi sem dúvida o pior mês da minha vida. Eu tive todos os efeitos colaterais que eu poderia ter. Todas as complicações aconteceram e eu passei por muitos maus momentos.
De artista circense acrobata eu tinha me transformado em uma velhinha frágil, que precisava de ajuda para comer, levantar, andar, tomar banho...Tentando manter a cabeça boa, vi como uma experiência. Normalmente interpreto personagens fortes , decididos...Agora eu tinha a vivencia da fragilidade, eu poderia aproveitar como um “laboratório” e se me aparecesse algum personagem assim, eu faria com facilidade. Essa animação durou uma semana, na segunda eu já tinha perdido a paciência, não agüentava mais depender dos outros para tudo. E quanto mais eu me irritava, mais fraca eu ficava e mais dependente. De novo me distanciei e tentei me trabalhar, aproveitar aquele sofrimento. Dei uma de professora de teatro: “Como Você se sente, como seu corpo reage com o fato do seu objetivo na cena ser apenas chegar até o banheiro sem acidentes?”
- Me sinto mal, me sinto um zumbi! Alguém me tira daqui!!Não agüento mais tudo isso!
Isso sem contar as dores, os enjôos, a minha inflamação terrível na boca... Fiquei 20 dias sem conseguir comer. A novela estava errada. Perder o cabelo é a parte mais tranqüila. O resto todo é muito pior!
“Por que eu?!?!” – eu gritava no quarto chorando- “Eu não vou conseguir!!É muito duro! È muito difícil! Por que isso tinha que acontecer logo comigo?!?!”
Foi quando meu pai me disse – “A pergunta não é por que você e sim por que não você?Milhões de pessoas passam por isso e por que você não pode passar?O que você tem de especial que não possa passar por isso? Eu sei que é duro, mas você vai conseguir. Tá tudo dando certo, é só questão de tempo. A gente tá aqui com você!”
Minha mãe- Se isso apareceu para você é porque você é forte o suficiente para passar por isso. Eu sei que é difícil, eu daria tudo para estar no seu lugar, mas agüenta mais um pouco, já esta acabando...
A partir daí eu passei a aceitar a doença e o tratamento. Era ruim, muito ruim, mas ia passar. Eu tinha duas coisas que contavam a meu favor: o tipo da doença não precisa de transplante e meu irmão era compatível comigo. Todas as rezas e as energias que me foram enviadas deram resultado afinal. Eu tinha alguma garantia concreta de que tudo daria certo e isso me deu uma tranqüilidade de aceitar a minha condição e passar por isso com a certeza de que teria um fim.

As pérolas

E no 30º dia eu recebi minha alta. Saí do hospital chorando, cheguei em casa chorando. Eu não acreditava que os dias de quarto branco do Big Brother tinham terminado. Eu estava em casa afinal. Eu, que nunca fui de chorar, agora chorava por tudo. Era uma visita, um presente, um filme, uma peça, uma ligação. A minha fragilidade agora era outra. Mas desta eu estava gostando. Eu estava acessando sentimentos e sensações que eu nunca soube que existiam em mim. Que lugar era esse que as coisas comuns me tocavam com tanta força? Por que isso acontecia? Minha percepção do mundo já tinha mudado, tudo ganhou outro valor e eu acho que essa foi minha primeira pérola. Perceber que alguma coisa em mim se transformou e nunca voltaria a ser o que era antes.
Estou agora de “férias” do tratamento em casa, de novo passando por um aniversário fora de época, cheio de visitas, saidinhas, presentes e recados bonitos. Semana que vem eu me interno de novo para a segunda fase da quimioterapia. Não sei o que me espera dessa vez, mas sei que vai passar.
Bom, uma grande coisa aconteceu na minha vida. A pergunta é: O que eu vou fazer com isso? Eu posso guardar na memória como um período ruim da minha vida ou não. E é nesse “ou não” que estão as mais infinitas possibilidades. Uma oportunidade disfarçada de doença, é isso que é. Que venham as pérolas!